"Dê um rolê": ode a contracultura ou devocional cristão?
"Dê um rolê", dos Novos Baianos, é uma daquelas canções que pedem mais do que uma simples escuta: exigem contexto. Composta por Luiz Galvão e Moraes Moreira enquanto viviam em Camaçari, Bahia, a música foi inicialmente oferecida a Gal Costa em 1970, mas só ganhou os palcos na voz da baiana um ano mais tarde, num show ao vivo em Londres com Gilberto Gil — já que questões políticas barraram sua gravação em estúdio.
Lançada oficialmente em 1971 no compacto (Novos Bahianos + Baby Consuelo) No final do juízo, a canção carrega em seus versos uma mensagem direta e libertadora, mas para entendê-la de verdade é essencial olhar também para o momento histórico e cultural em que surgiu.
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Capa do compacto No final do juízo, produzido pela Philips e considerado hoje uma raridade. |
Marília Aguiar, ex-nova baiana e mulher de Paulinho Boca de Cantor na época, revelou em seu livro de memórias, Caí na estrada com os Novos Baianos (2020), como surgiu a imagem do LP. Conta Marília que em 1971, ainda sem um local fixo para morar, os membros da banda pulavam de casa em casa em busca de abrigo e comida. Um desses conhecidos anfitriões foram o casal Sônia e Jucélio Dutra, que moravam em um condomínio na Avenida Niemeyer, no Rio de Janeiro, e que conheceram os meninos na gravação do Programa do Chacrinha no ano anterior. Escreve Marília:
"O casarão era deslumbrante, cercado por jardins, com piscina grande e janelões abertos sobre o mar. [...] [Nos] ofereceram um quarto vazio em cima da garagem para ficarmos. Aceitamos, claro! Foi uma atitude tão surpreendente que acabamos inventando mil histórias sobre eles. [...] Dentro da casa, no alto da escada havia um quadro retratando um Jesus Cristo bem diferente, com olhos fundos, que pareciam nos seguir. Era tudo bem estranho. Essa imagem foi usada na capa do compacto Novos Bahianos + Baby Consuelo no final do juízo" (p. 55).
No final dos anos 1960 surgia no Brasil a Tropicália, com figuras como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Os Mutantes, entre outros – e os Novos Baianos, que embora mais associados ao samba e ao rock, dialogavam fortemente com essa estética. O movimento propunha uma ruptura com as formas tradicionais da cultura brasileira, ao mesmo tempo em que rejeitava o nacionalismo fechado e incorporava elementos estrangeiros, como o rock psicodélico, o pop, o cinema novo e a arte de vanguarda.
Sob a ditadura militar essa postura era extremamente transgressora. A Tropicália não fazia oposição frontal e panfletária ao regime, como parte da esquerda esperava, mas propunha uma subversão pelo excesso, pelo delírio, pela mistura e pela liberdade subjetiva.
Sobre misturar o nacional com o estrangeiro durante a ditadura, Luiz Galvão escreveu em seu livro de memórias Novos Baianos: A história do grupo que mudou a MPB:
Uma das marcas dos anos 1970 foi o tom anárquico que se refletiu nas apresentações e na postura dos artistas e em sua arte. Principal banda daquela década, o Novos Baianos viveu profundamente aquele momento de exceção no país, respondendo de forma anárquica e com atitudes chocantes, mas sem baixar o nível do trabalho artístico. Caminhou no sentido oposto ao do panfletário protesto engajado sem poesia. Por essa soma de discordâncias pacíficas, identificou-se com a juventude e, ao mesmo tempo, teve aceitação do público de modo geral: por isso, foi assimilado até por parte do pessoal da ditadura, que exercia o poder com autoritarismo.
A expressão “dar um rolê” assume na letra um valor muito maior do que o simples ato de passear. É uma atitude: recusar o sistema de valores dominante (competição, repressão, violência) e propor um modo de vida mais livre, espontâneo e baseado no amor e no prazer. Essa ética está muito próxima da contracultura dos anos 60 e 70, que defendia a liberdade sexual, a expansão da consciência (frequentemente associada a substâncias psicodélicas), o questionamento das instituições e o retorno à natureza ou à vida comunitária.
Os Novos Baianos eram, em essência, uma expressão brasileira dessa contracultura. Viviam coletivamente no sítio "Cantinho do Vovô", praticavam a economia do afeto, compartilhavam tudo (inclusive a criação dos filhos) e fundiam samba, choro, rock e poesia numa proposta artística que era, ao mesmo tempo, anárquica e afetuosa.
Decupando a letra
Não se assuste, pessoa
Se eu lhe disser que a vida é boa
Os primeiros versos são um chamado do eu-lírico (esperançoso) para seu interlocutor (pessimista) não temer a afirmação de que a vida é boa; sugerindo que, apesar das adversidades, existe uma beleza intrínseca na existência que deve ser apreciada.
Do ponto de vista cristão, podem ser interpretados como um convite à confiança, mesmo diante da dor ou do caos. É como se essa afirmação se tornasse quase um chamado à fé, à esperança e ao amor – as três virtudes teologais.
Enquanto eles se batem
Dê um rolê e você vai ouvir
O conselho é claro: enquanto as coisas ruins acontecem, tente se afastar, espairecer um pouco e buscar uma experiência mais autêntica e positiva da vida. É uma chamada para focar no que realmente importa, porque a vida é muito maior e ela continua, apesar da dor e das mazelas. Não se envolva na guerra do mundo, vá viver, vá amar, vá "dar um rolê". Isso ecoa os ensinamentos de Jesus sobre não retribuir o mal com o mal, sobre dar a outra face, e sobre buscar, através do amor, o Reino de Deus dentro de si.
Dado o contexto histórico, esses versos ganham um caráter quase de manifesto tropicalista: não entre na lógica binária da guerra – viva, deseje, crie outra lógica. Há também uma crítica sutil à polarização política da época – e até mesmo a certa rigidez da militância marxista-leninista. Em vez de bater, lutar ou brigar, o eu lírico propõe viver de outro jeito. Esse posicionamento, que alguns críticos da época (e até hoje) acusavam de "alienado", na verdade é revolucionário: propor o amor, a leveza e o prazer como centro da vida em tempos de autoritarismo e censura é um gesto político de resistência, sobretudo quando não se encaixa nem na lógica da direita, nem da esquerda autoritária.
Apenas quem já dizia
Eu não tenho nada
Antes de você ser, eu sou
O eu-lírico então conclui a estrofe dizendo que antes de qualquer coisa, antes do interlocutor aventar a possibilidade, ele já era amor por inteiro. "Antes de você perceber que a vida é maior do que o seu pessimismo, eu já tinha percebido". Para a interpretação cristã, seria o próprio Cristo falando: Antes de você ser quem é, "eu sou o alfa e o ômega, o princípio e o fim de todas as coisas" (Apocalipse 21:6).
Ele é antes de todas as coisas e por meio dele tudo subsiste. (Colossenses 1:17)
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Da dir. para esq.: Luiz Galvão (sentado), Paulinho Boca de Cantor, Baby do Brasil (meio) e Moraes Moreira em ensaio fotográfico para o compacto No final do juízo (1971). |
Eu sou, eu sou, eu sou
Eu sou o amor da cabeça aos pés
Curiosamente, na gravação original o refrão é repetido três veze seguidas e as palavras "eu sou" também. Na tradição cristã, o número três carrega um profundo simbolismo espiritual, associado principalmente à Santíssima Trindade — Pai, Filho e Espírito Santo — que representa a unidade perfeita entre as três divindades em um único Deus. O número também remete à ressurreição de Cristo ao terceiro dia, ao tríplice chamado de Jesus a Pedro ("Tu me amas?") e à presença constante do três em práticas litúrgicas, como a repetição de orações e louvores. Essa recorrência reforça a ideia de plenitude, perfeição e confirmação espiritual. Assim, quando um elemento aparece três vezes, pode sugerir, mesmo inconscientemente, uma afirmação total, um reforço simbólico de algo absoluto, quase sagrado, ecoando essa tradição de repetição que consagra a verdade no imaginário cristão.
Na Bíblia, especialmente no Antigo Testamento, Deus se apresenta a Moisés como "Eu Sou o que Sou" (Êxodo 3:14). No Novo Testamento, Jesus retoma essa linguagem em diversas passagens, como em João 8:58: "Antes que Abraão existisse, Eu Sou", o que é entendido por muitos teólogos como uma declaração de divindade. A repetição do "eu sou" na letra não apenas reforça uma identidade forte, mas pode remeter diretamente a esse uso bíblico. Ao se declarar como "amor da cabeça aos pés", o eu lírico se coloca como a própria encarnação do amor – o que é totalmente coerente com a teologia cristã que vê Jesus como o amor divino feito carne.
Ser "amor da cabeça aos pés" sugere que não se trata apenas de praticar o amor, mas de ser amor em essência, de forma integral. Isso se alinha com a doutrina cristã do amor ágape – o amor incondicional e divino que emana de Deus. Jesus, ao afirmar que o maior mandamento é amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (Mateus 22:37-39), faz do amor o eixo da vida espiritual. E o mandamento "amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado" (João 13:34) aponta diretamente para o amor como forma de vida – que também aparece na música como uma proposta existencial.
Ser amor por inteiro significa ser livre, amar quem você quiser, independente das amarras ou barreiras.
Nessa interpretação, Jesus (deus-filho) é a própria encarnação do amor, corroborado por 1 João 4:16 ("Deus é amor"). Em João 14:6, Jesus diz que ele é o caminho e a vida e que ninguém chega a deus-Pai senão por ele. Ora, se ninguém chega ao pai senão por ele, é preciso ser "amor da cabeça aos pés", ou seja, ser como Cristo, para se aproximar do divino.
Eis que um novo mandamento vos dou: amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado. (João 13:34)
E só tô beijando o rosto
De quem dá valor
Pra quem vale mais o gosto
Do que cem mil réis
Esses versos sugerem uma ética do afeto, da sinceridade, da valorização do que é sentido em oposição ao que é comprado. O gosto e o beijo estão acima do dinheiro. Jesus também falou sobre: "Ninguém pode servir a dois senhores... não podeis servir a Deus e ao Dinheiro" (Mateus 6:24). O amor não pode ser comprado, e o que vale é a experiência vivida com verdade.
O amor nessa letra não é apenas um sentimento: ele é identidade e critério de valor. Isso inverte completamente os padrões capitalistas e utilitaristas. A lógica aqui é afetiva, subjetiva, contra-hegemônica: vale mais um beijo verdadeiro, um gosto sentido, do que qualquer soma de dinheiro. Em termos políticos, isso se alinha com a crítica à sociedade de consumo e ao materialismo exacerbado. Em termos espirituais, conecta-se com a ideia cristã do amor como fonte e fim de tudo.
BIBLIOGRAFIA:
GALVÃO, L. Novos Baianos: A história do grupo que mudou a MPB. São Paulo: Lazuli Editora, 2014;
GASPAR, M. Acabou chorare: o rock'n'roll encontra a batida de João Gilberto. São Paulo: Edições Sesc SP, 2020;
Letras.com. Disponível em: https://www.letras.mus.br/os-novos-baianos/1169700/significado.html. Acesso em: 19 abr. 2025.
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