Babalu: Angela Maria e o poder de um canto-ritual

Em 1958, uma gravação improvisada deu origem a uma das interpretações mais marcantes da carreira de Angela Maria. Na época, o pianista e maestro Waldir Calmon estava nos estúdios da gravadora Copacabana Records (hoje comprada pela Universal Music) finalizando mais um de seus álbuns dançantes — Quando Os Astros Se Encontram — quando teve uma ideia: convidar a cantora que ensaiava no estúdio ao lado para dar voz a uma de suas faixas.

A cantora em questão era ninguém mais ninguém menos que Angela Maria, uma das maiores estrelas do rádio brasileiro, conhecida como Sapoti, apelido carinhoso dado pelo próprio presidente Getúlio Vargas. Aos 28 anos, no auge da carreira e membro do elenco da Rádio Nacional do Rio, Angela aceitou o convite e, sem saber que estava sendo gravada, soltou a voz em um ensaio informal. O resultado foi tão impressionante que o que ouvimos hoje é justamente esse ensaio espontâneo — uma gravação que capta a emoção crua e a entrega visceral de uma das maiores intérpretes da música brasileira.

A canção escolhida foi "Babalu", composta pela cubana Margarita Lecuona e escrita originalmente em espanhol. Seu ritmo afro-cubano vibrante, com forte influência percussiva, fazia da música uma escolha certeira para os bailes dos anos 1950 — ambientes nos quais o teclado inconfundível de Calmon era sinônimo de pista cheia. Mas "Babalu" não era apenas música para dançar: era, e ainda é, um canto carregado de simbolismo e ancestralidade.


Capa do álbum Quando Os Astros Se Encontram, de 1958, em que Angela cantou Babalu.

Babalu-Ayé: entre o sagrado e o profano

O título Babalu não é aleatório. Trata-se de uma referência direta a Babalu-Ayé, divindade da Santería cubana, religião afro-caribenha com fortes vínculos com o Candomblé e outras tradições afro-brasileiras. Na cosmologia iorubá, Babalu-Ayé é associado à cura, às doenças e à proteção espiritual. Nos rituais, é comum o uso de velas, bebidas alcoólicas, tabaco e oferendas em dinheiro — elementos todos presentes na letra da canção.

Na voz de Angela Maria, a música transcende o entretenimento. Ganha força de reza, de súplica. O eu-lírico clama por amor, saúde, dinheiro e fidelidade, num misto de prece e encantamento.

A letra descreve um despacho ou ritual dedicado a Babalu-Ayé. O narrador pede dezessete velas para montar em cruz, elemento comum em rituais de oferenda e proteção. Itens como tabaco, cachaça e dinheiro, também são comuns em rituais afro-latinos como forma de agradecimento ou pedido de bênçãos e boa sorte. As súplicas são direcionadas para que o eu-lírico encontre ou tenha de volta o seu amor (Yo le quero pedir/Que me nego me quiera), alguém com dinheiro e saúde (Que le tenga dinero/Y que no se muera), e que nunca o abandone para ficar com outra pessoa (Que no tenga otra nega/Pa que no se fuera).

É uma canção de fé e desejo, de desespero e esperança — sentimentos universais que ressoam com qualquer ouvinte, independentemente de sua origem ou crença.

Angela Maria e a tradição reinventada

A versão de Angela Maria se destaca não apenas pela qualidade vocal — inquestionável —, mas também pela forma como ela reinterpreta uma tradição musical e espiritual latino-americana sob uma perspectiva brasileira. Diferente da versão de Dalva de Oliveira, lançada em 1943 com letra em português e uma abordagem mais dramática, Angela entrega uma versão mais dançante, mais quente, com pulsação tropical. Sua interpretação em espanhol é energética e sensual, respeitando a origem da obra, mas também imprimindo seu estilo inconfundível.

A música já havia conquistado fama internacional: a primeira gravação conhecida é de 1939, lançada nos Estados Unidos. Em 1941, Babalu ganhou sua primeira versão em inglês, adaptada por Sydney King Russell, e logo entrou no repertório de artistas populares norte-americanos, como Desi Arnaz, que a cantava em programas de TV nos anos 1940 e 1950. Mas foi Angela Maria quem trouxe a música de volta às suas raízes afro-caribenhas, com emoção e verdade.

Dezessete anos após a gravação original, em 1975, Angela Maria apresentou Babalu ao vivo em rede nacional, no programa Fantástico, da TV Globo, acompanhada por orquestra. Aos 45 anos, ela não apenas manteve sua potência vocal — como também impressionou pela técnica refinada e pelos sustenidos precisos, provando que sua arte atravessava o tempo. Foi uma reafirmação de sua grandeza como intérprete e de sua habilidade de emocionar, independente da década.

Um retrato cultural e espiritual

"Babalu", na voz de Angela, é um patrimônio cultural, uma ponte entre o Brasil e a América Latina afrodescendente. A canção resgata elementos de espiritualidade e identidade, muitas vezes marginalizados, e os apresenta com beleza, ritmo e dignidade. É também um testemunho do talento de Angela, que soube como poucos unir técnica, emoção e ancestralidade em uma performance única.

Em tempos de consumo acelerado e descartável, ouvir "Babalu" é um convite à escuta atenta, ao mergulho profundo nas raízes da nossa musicalidade e na riqueza de nossas expressões culturais.



Análise da letra

Babalu
Babalu
Babalu-Ayé
Babalu-Ayé

Logo nos primeiros versos, a repetição do nome remete a um canto invocatório, uma chamada espiritual. Babalu-Ayé, divindade da Santería cubana (e equivalente ao orixá Obaluaiê nas religiões afro-brasileiras), é um ser poderoso, ligado às doenças e às curas, à pobreza e à proteção dos necessitados.

A repetição aqui funciona como um mantra ou um ponto cantado: reforça a presença e a sacralidade do nome, criando um clima cerimonial e devocional. Angela Maria o faz com imponência e fervor — a voz que canta é também a de quem reza.

Tá empezando lo velorio / Está começando o ritual
Que le hacemo a Babalu / Que fazemos para Babalu

Este trecho pode causar estranhamento à primeira vista. O “velório” não deve ser entendido literalmente como um funeral humano. É um ritual simbólico, parte de certas cerimônias em que se representa a morte como transição e renascimento espiritual. A frase revela um ritual que está prestes a começar, e que exige oferendas e concentração espiritual.

Esses versos soam quase como um chamado coletivo: o momento sagrado está começando, e todos devem se preparar para a oferenda.

Dame diecisiete velas / Dê-me dezessete velas
Pa ponerla en cruz / Para colocá-las em cruz

As velas são elementos fundamentais em rituais afro-latinos. O número dezessete pode ter significados esotéricos ou numerológicos específicos, mas o mais importante aqui é sua disposição em cruz — símbolo de fé, passagem e proteção.

A cruz, nesse contexto, não se restringe ao cristianismo. Ela aparece em diversas cosmologias como ponto de contato entre o mundo físico e o espiritual. Acender velas em forma de cruz é um modo de abrir um caminho para o pedido ser ouvido pela divindade.

Dame un cabo de tabaco, mañengue [Dê-me um pedaço de tabaco, mañengue]
Y un jarrito de aguardiente [E uma garrafa de aguardente]

Aqui aparecem elementos clássicos de oferenda ritual: o tabaco e a aguardente. O tabaco, nas religiões afrodescendentes, é um veículo de comunicação espiritual — sua fumaça serve para "carregar" os pedidos. Já a aguardente (cachaça ou rum) é oferecida como símbolo de energia vital, gratidão e respeito.

"Mañengue" é uma expressão de origem africana que aparece como interjeição ou reforço musical e rítmico, comum em cantos afro-caribenhos. É quase como uma exclamação, um chamado rítmico que Angela pronuncia com maestria, fazendo dele parte da percussão vocal.

Dame un poco de dinero, mañengue [Dê-me um pouco de dinheiro, mañengue]
Pa que me de la suerte [Para que me traga sorte]

Aqui o pedido é direto: dinheiro como forma de atrair sorte. Em rituais, não se trata apenas de pedir riqueza, mas sim de abrir caminhos, de garantir a sobrevivência e a dignidade. O dinheiro também pode simbolizar a energia de troca com o mundo: o que se oferece, volta.

Angela Maria interpreta esses versos com intensidade, transformando o clamor material em um apelo universal. Em sua voz, o desejo de sorte transcende o individual e passa a representar as esperanças de todos os que ouvem.

Yo le quiero pedir (ai) [Quero pedir a ele]
Que mi negro me quiera [Que meu negro me ame]
Que tenga dinero [Que tenha dinheiro]
Y que no se muera [E que não morra]

Este é o coração afetivo da canção. O ritual se revela, no fim das contas, como um pedido de amor. O eu-lírico — provavelmente uma mulher — suplica para que seu companheiro a ame, seja próspero e não adoeça. São desejos simples, mas profundamente humanos: amor, sustento e saúde.

Angela Maria interpreta esse trecho com uma vulnerabilidade rara. A potência da sua voz dá lugar a uma súplica contida, quase melancólica, como se cantasse para si mesma.

Yo le quiero pedir a Babalu [Eu quero pedir a Babalu]
Un negrito muy santo, como tú [Um benzinho muito santo, como você]

Aqui, o tom muda levemente para algo mais esperançoso. O pedido agora é por um parceiro "muito santo" — expressão que pode significar tanto bondade quanto respeito às tradições religiosas. O uso da expressão "negrito", no contexto histórico e geográfico, é afetivo, carinhoso, e reforça o tom confessional e íntimo da súplica.

Que no tenga otra negra [Que ele não tenha outra]
Pa que no se fuera [Para que não me deixe]

Este verso finaliza o apelo com ciúmes e medo do abandono. O amor, que antes era desejo e cuidado, agora revela sua face insegura. O eu-lírico deseja exclusividade e teme ser trocado por outra. Angela Maria canta isso com paixão contida. É o ponto de máxima identificação com o público: todos, em algum momento, já temeram perder quem amam.

Babalu-Ayé
Babalu-Ayé
Babalu-Ayé
Babalu-Ayé...

A música termina como começou: com a repetição do nome sagrado. Mas agora, após a súplica completa, a parte final soa mais resignada, mais introspectiva. Não há garantia de que o pedido foi atendido — mas há fé. E fé, nesse contexto, é tudo o que se pode oferecer ao universo.

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