Rocket Man: A solidão entre as estrelas
De O Rei Leão (1994) ao filme Rocketman (2019), é quase impossível que você nunca tenha se deparado com a genialidade musical de Elton John, um dos maiores hitmakers da história da música contemporânea. Entre seus inúmeros sucesso — e são muitos — está a clássica "Rocket Man (I Think It’s Going to Be a Long, Long Time)". Embora o título completo soe um pouco longo, a maioria das pessoas a conhece simplesmente como "Rocket Man".
A canção é um verdadeiro marco na carreira de Elton John e presença constante em seus shows. Um exemplo emblemático aconteceu em 1997, quando Elton apresentou "Rocket Man" durante o lançamento do ônibus espacial Discovery (STS-82), da NASA. Em 2016, em tributo a David Bowie — outro gigante da música —, ele fez um emocionante mashup no piano, mesclando "Rocket Man" com "Space Oddity", uma das músicas mais icônicas do rei do glam rock.
Lançada em 3 de março de 1972, como quinta faixa do álbum Honky Château, "Rocket Man" rapidamente se tornou um sucesso mundial. No Reino Unido, alcançou o primeiro lugar nas paradas em abril daquele ano e, em 2004, foi eleita pela revista Rolling Stone como uma das 500 maiores músicas de todos os tempos.
Nos Estados Unidos, o single foi lançado em 17 de abril de 1972, alcançando a 6ª posição na Billboard Hot 100. Mesmo cinco décadas depois, seu impacto permanece colossal: em janeiro de 2022, a música foi certificada com dupla platina pela British Phonographic Industry (BPI), somando mais de 1,2 milhão de downloads e streamings no Reino Unido, e recebeu platina tripla pela Recording Industry Association of America (RIAA), com mais de 3 milhões de cópias digitais vendidas nos EUA.
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Capa do álbum Honky Château (1972), que contém "Rocket Man". |
Muito além da viagem espacial
À primeira vista, "Rocket Man" parece narrar os sentimentos de um astronauta isolado, que deixa para trás sua família e sua vida na Terra para cumprir uma missão em Marte. Entretanto, diferente da visão romantizada do astronauta-herói tão presente na cultura da época, aqui ele surge como um trabalhador comum, alguém que encara o espaço como uma extensão de suas obrigações profissionais — e não como uma aventura épica.
Essa abordagem ganha ainda mais força quando lembramos que vivíamos, nos anos 60 e 70, o auge da corrida espacial, com a NASA no centro das atenções globais, alimentando tanto o imaginário popular quanto a indústria cultural. A Guerra Fria, os feitos da exploração espacial e a ascensão da divulgação científica — impulsionada por nomes como Carl Sagan e, posteriormente, Stephen Hawking — moldaram profundamente o fascínio coletivo pelo cosmos.
A semelhança com "Space Oddity" (1969), de David Bowie, não é coincidência. Ambas as músicas compartilham não só o tema do isolamento espacial, mas também a visão melancólica do espaço como metáfora para a solidão, a alienação e, talvez, a desumanização do trabalho.
Planície de marte pelas lentes da nave americana Viking 2, em 5 de setembro de 1976. Primeira imagem colorida de Utopia Planitia. Fonte: NASA |
Metáforas: Fama, drogas e isolamento
Embora a temática espacial seja evidente, "Rocket Man" também foi, desde seu lançamento, interpretada como uma metáfora sobre os efeitos da fama e, possivelmente, sobre o uso de drogas. O astronauta flutuando no espaço representa o artista que, uma vez alçado ao estrelato, experimenta uma espécie de isolamento, uma desconexão do mundo real — algo que muitos músicos relataram sentir ao alcançar o sucesso.
Essa leitura dialoga diretamente com outras músicas da mesma época, cujas letras evocam sensações psicodélicas ou escapistas. O exemplo mais notório talvez seja "Lucy in the Sky with Diamonds" (1967), dos Beatles, frequentemente associada ao LSD — embora os próprios integrantes negassem repetidamente essa interpretação. No entanto, a coincidência das iniciais (L.S.D.) e o conteúdo onírico da letra alimentaram por décadas essa associação.
No caso de "Rocket Man", a analogia é mais sutil, menos lisérgica e mais existencial: o espaço aqui não é um lugar de descobertas psicodélicas, mas um território de solidão e reflexão, onde o protagonista percebe que, mesmo cercado pela imensidão do universo, não consegue escapar de sua própria humanidade.
Análise da letra
She packed my bags last night pre-flight
Zero hour 9 a.m.
And I'm gonna be high as a kite by then
I miss the Earth so much, I miss my wife
Segundo Bernie Taupin, esses versos lhe ocorreram enquanto dirigia, à noite, sob um céu estrelado a caminho da casa de seus pais. A imagem inicial é profundamente íntima e melancólica: a esposa do eu-lírico ajuda a arrumar suas malas na noite anterior ao voo. A expressão "pre-flight" remete aos procedimentos que antecedem qualquer missão espacial — uma série de checagens, testes e preparativos rigorosos até a tão esperada "zero hour", que é o momento da decolagem, neste caso às 9 da manhã.
O verso "I'm gonna be high as a kite by then" é um jogo de palavras engenhoso. Literalmente, significa estar muito alto, como uma pipa no céu, referindo-se ao momento em que o foguete estará em órbita. Mas também pode carregar uma conotação ambígua, sugerindo o efeito de estar "alto" no sentido de entorpecido — seja pelas emoções, seja como metáfora para estados alterados de consciência. Curiosamente, esse verso é cantado exatamente aos 0:09 segundos da gravação — uma coincidência deliberada ou não, mas que adiciona uma camada de charme à música.
Há também um detalhe musical brilhante: quando Elton canta a palavra "high", ele literalmente sobe na melodia, saltando da nota A5 para D6, criando uma sensação sonora de elevação. Não é apenas a letra que nos fala sobre estar alto; a própria melodia traduz essa sensação no corpo de quem ouve.
It's lonely out in space
On such a timeless flight
And I think it's gonna be a long long time
Aqui, o eu-lírico já está em órbita e começa a descrever a solidão do espaço. A expressão "timeless flight" [voo atemporal] tem um significado literal e simbólico. Literal, porque no espaço as referências temporais da Terra se dissolvem — não há dias e noites claros, mas apenas ciclos intermináveis de nascer e pôr do Sol a cada 90 minutos, dependendo da órbita. Simbólico, porque estar no espaço é também estar fora do fluxo natural da vida, distante das relações humanas, dos afetos e da própria rotina terrestre.
Quando Taupin escreveu esses versos, ele imaginava um futuro onde ser astronauta poderia ser uma profissão comum, rotineira. E, de certa forma, estava certo: na década de 1970, as missões tripuladas da NASA duravam entre uma semana e três meses; hoje, missões na Estação Espacial Internacional podem durar mais de 100 dias, e algumas ultrapassaram um ano. Na década de 1980, o cosmonauta soviético Valeri Polyakov viveu 437 dias consecutivos na estação Mir, um recorde que fala diretamente desse sentimento de isolamento prolongado.
No espaço, perde-se a noção do tempo tal qual o conhecemos. Não há relógio biológico que resista ao eterno ciclo de órbitas. O Sol não “nasce” nem “se põe” como na Terra. Tudo o que se vê, olhando pela escotilha, é a Terra se afastando, cada vez menor, até se perder na vastidão negra do universo atemporal.
'Til touchdown brings me 'round again to find
I'm not the man they think I am at home
Este trecho quebra de vez o mito do astronauta-herói. Ao retornar — o "touchdown", ou pouso — ele percebe que "não sou o homem que pensam que sou". Esse verso revela uma crise de identidade e um conflito interno que dialoga com experiências reais: diversos astronautas, após missões, relataram crises existenciais, depressão, alcoolismo e sensação de vazio. Isso porque, quando retornam à Terra, precisam se encaixar novamente em uma vida que parece pequena, comum, após terem estado literalmente fora do mundo.
Essa angústia ecoa também na vida de artistas e celebridades, que, embora idolatrados pelo público, frequentemente enfrentam um abismo interno entre a imagem pública idealizada e sua própria realidade humana, cheia de falhas, dúvidas e contradições.
Mars ain't the kind of place to raise your kids
In fact, it's cold as hell
And there's no one there to raise them if you did
Este é um dos versos mais icônicos e diretos da música. Marte é apresentado não como o símbolo do futuro ou da esperança, mas como um lugar inóspito, frio e desolado — “cold as hell” (frio como o inferno, numa ironia que inverte a imagem tradicional do inferno como um lugar quente). É uma declaração honesta e até brutal: não há ninguém lá, ninguém com quem contar, ninguém para ajudar a criar seus filhos.
Do ponto de vista científico, essa descrição não é exagerada. Marte possui uma atmosfera rarefeita, temperaturas que podem chegar a -120°C, tempestades de poeira que duram meses e níveis de radiação perigosos para qualquer forma de vida humana. A colonização do planeta é, até hoje, um desafio mais teórico do que prático.
And all the science, I don't understand
It's just my job five days a week
Aqui o astronauta admite: não entende toda a ciência envolvida. Para ele, pilotar um foguete não é mais do que um trabalho, uma rotina semanal. Essa banalização de algo que, para nós, parece extraordinário, revela uma profunda reflexão sobre a alienação do trabalho. Mesmo que este trabalho seja navegar pelo cosmos.
O espaço, nesse sentido, deixa de ser o símbolo do sublime e se torna apenas o palco de mais um emprego. É como se dissesse: “Não importa onde você esteja — seja numa mesa de escritório, numa fábrica ou numa estação espacial —, o trabalho ainda é trabalho.” O eu-lírico, entediado com a parte burocrática do trabalho, cria uma metáfora. Para ele, estar em órbita é como estar preso em um laboratório de pesquisa.
O astronauta, o artista e o ser humano
"Rocket Man" não é apenas uma música sobre espaço. É, sobretudo, uma música sobre solidão, sobre estar deslocado, sobre viver uma vida que parece grandiosa por fora, mas profundamente angustiante por dentro. Seja o astronauta preso à sua órbita, seja o artista preso à fama, ou seja qualquer um de nós, perdido na rotina e nos papéis que somos obrigados a desempenhar.
Ao mesmo tempo que fala de Marte, de foguetes e da imensidão cósmica, "Rocket Man" é um espelho das nossas próprias experiências humanas: a busca por pertencimento, o peso das expectativas alheias e a constatação de que, às vezes, nem o céu é o limite para a nossa solidão.
E talvez seja por isso que essa música, mais de meio século depois, continua a ressoar em quem a ouve. Porque no fundo, todos somos, em algum nível, "Rocket Men" — flutuando, sozinhos, caindo no escuro e tentando entender nosso lugar no universo.
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