Life on Mars: Uma ópera sobre desilusão e busca por sentido

“Life On Mars?” é amplamente reconhecida como uma das obras-primas de David Bowie, tanto pelos fãs quanto pela crítica especializada. E não é por acaso. Lançada como parte do álbum Hunky Dory, em 17 de dezembro de 1971 — gravada em 6 de agosto do mesmo ano, no icônico Trident Studios, em Londres —, a canção só se tornaria single dois anos depois, em junho de 1973, durante o auge da era Ziggy Stardust. Foi então que explodiu nas paradas do Reino Unido e de diversos outros países, solidificando-se como um dos maiores marcos da carreira de Bowie.


Produzida por David Bowie e Ken Scott, a faixa conta com músicos que se tornariam fundamentais no som do artista. O piano, instrumento que guia toda a composição, foi executado magistralmente por Rick Wakeman, que recusaria pouco depois um convite para integrar a banda de Bowie, optando por se juntar ao Yes. Curiosamente, o piano usado na gravação — um Bechstein de 1898 — também foi utilizado por Paul McCartney na gravação de "Hey Jude", dos Beatles, e, mais tarde, por Freddie Mercury em "Bohemian Rhapsody".

A Pitchfork chegou a classificar "Life On Mars?" como a melhor música dos anos 1970.

Uma das curiosidades mais conhecidas — e deliciosamente irônicas — sobre "Life On Mars?" é que ela nasceu, em parte, como uma reação de Bowie à rejeição de uma de suas primeiras tentativas como compositor. Em 1968, ele escreveu a letra de “Even a Fool Learns to Love”, uma versão em inglês da música francesa "Comme d'habitude", de Claude François e Jacques Revaux. A gravadora recusou a versão de Bowie e optou pela adaptação de Paul Anka, que reescreveu a canção como "My Way", imortalizada por Frank Sinatra em 1969. O estrondoso sucesso dessa versão deixou Bowie frustrado, o que o levou a compor "Life On Mars?", descrita por ele como “uma versão satírica de My Way”.

Capa original do álbum Hunky Dory, que traz Life on Mars? como sua quarta faixa.


Uma pintura surreal da sociedade moderna

A música se inicia com uma sequência hipnotizante de acordes ao piano que imediatamente transporta o ouvinte para um universo onírico, quase teatral. A letra apresenta uma colagem de imagens surreais, desconexas à primeira vista, mas profundamente simbólicas. A personagem principal é uma jovem desiludida, vivendo uma existência entediante, sufocada por uma sociedade alienante, na qual os pais brigam constantemente e ela busca, no cinema, um refúgio para sua angústia existencial.

O roteiro do filme que ela assiste, porém, se revela um espelho deformado da própria vida: gangues, violência, banalização da cultura, manipulação midiática e a constante tensão da Guerra Fria. Nada oferece a ela uma verdadeira fuga. Pelo contrário, reforça a percepção de que o mundo está saturado de superficialidade e miséria simbólica.

A pergunta que dá título à canção — “Is there life on Mars?” — não se refere, evidentemente, a uma busca literal por vida extraterrestre. É uma metáfora pungente, quase desesperada, sobre a possibilidade de existir algum sentido além do que se apresenta na realidade ordinária. Trata-se da busca por um outro lugar — físico ou mental — onde a vida, a beleza e a autenticidade possam, de fato, existir.

Em 2008, numa entrevista ao Daily Mail sobre seu novo álbum compilado, iSelect, Bowie contou sobre a composição de Life On Mars: "Foi muito fácil. Ser jovem era fácil. [Foi em] um lindo dia no parque, sentado nos degraus do coreto. [...] [Pensei em] Uma heroína anômica. O êxtase da classe média". Bowie também contou que a melodia surgiu pronta enquanto caminhava para pegar um ônibus até Lewisham. "Não conseguia tirar o riff da cabeça. Soltei dois pontos depois e fui saltitando de volta para casa, na Southend Road".
"O [meu] espaço de trabalho era uma grande sala vazia com uma espreguiçadeira; uma tela art nouveau barata, [...] um cinzeiro enorme e cheio e um piano de cauda. Pouca coisa a mais. Comecei a trabalhar no piano e terminei a letra e a melodia no final da tarde. Ótimo. Rick Wakeman veio semanas depois e embelezou a parte do piano."

O paradoxo do escapismo

"Life On Mars?" desmonta magistralmente o próprio conceito de escapismo. Ao buscar alívio na arte — aqui representada pelo cinema —, a jovem descobre que a arte, por mais que se proponha a fantasiar, é um reflexo distorcido, porém fiel, da própria realidade. Surge então um dilema filosófico de proporções existenciais: é possível escapar da vida através da arte, ou a arte é inevitavelmente uma reprodução das dores, frustrações e contradições do mundo? Seria a arte realmente capaz de criar algo que não existe ou está fadada a repetir a realidade? E se repete a realidade, podemos encontrar escapismo verdadeiro nela? A vida imita a arte ou a arte imita a vida?

Bowie parece sugerir que a própria tentativa de alienação está condenada a fracassar. A linha que separa a ficção da realidade é tênue, por vezes inexistente. A arte não cria um outro mundo: ela reflete, exagera, satiriza ou escancara o nosso.


Em uma entrevista ao Daily Mail em 2008, Bowie definiu "Life On Mars?" como “a reação de uma jovem sensível à mídia”, e explicou: “Acho que ela se sente frustrada com a realidade. Embora esteja vivendo na inércia, ela ouve falar que existe uma vida bem melhor em algum lugar e fica extremamente desapontada por não ter acesso a ela”. Trata-se, portanto, de uma crítica aguda ao consumo passivo de cultura e ao falso ideal de felicidade propagado pelos meios de comunicação.

Curiosamente, Life on Mars voltou a figurar três vezes nas paradas de sucesso mesmo depois de seu lançamento. Primeiro em 2007, quando atingiu o número 55 após a conclusão da série britânica que levava seu nome. Depois, em junho de 2013, quando atingiu o número 89 após a notícia de que a sonda espacial rover Opportunity havia encontrado evidências de água em marte. E, por último, foi uma das dezesseis músicas de Bowie no Top 100 depois de sua morte, em 2016. Atingiu a 16ª posição, a mais alta de todas as músicas de Bowie naquela semana.


Impacto cultural

O impacto de "Life On Mars?" transcende gerações. A música foi regravada em português por Seu Jorge, especialmente para a trilha sonora do filme A Vida Marinha com Steve Zissou (2004), dirigido por Wes Anderson. Sua versão acústica, melancólica e minimalista, transformou completamente a obra, adicionando uma camada de suingue brasileiro.

Em 2014, a canção voltou aos holofotes ao ser interpretada pela personagem Elsa Mars (Jessica Lange) no primeiro episódio da série American Horror Story: Freak Show. Ryan Murphy, criador da série, disse que buscava músicas de artistas que celebravam sua própria excentricidade — algo que Bowie não só fazia, como incorporava como filosofia de vida. A escolha foi tão simbólica quanto poderosa, especialmente dentro de uma narrativa que aborda os marginalizados, os excluídos e os considerados “aberrações” pela sociedade.

Não por acaso, Billie Joe Armstrong, vocalista do Green Day, declarou que gostaria que "Life On Mars?" fosse tocada em seu funeral. Isso demonstra o quanto a música, apesar de sua estrutura complexa e letra enigmática, toca em questões humanas universais: o desejo de ser visto, a busca por sentido e o desconforto perante um mundo que frequentemente não faz sentido.

Pôster de American Horror Story: Freak Show, que contou com Jessica Lange, Angela Bassett, Sarah Paulson, Evan Peters e Kathy Bates no elenco.

O videoclipe foi filmado em 1973 pelo fotógrafo Mick Rock, nos bastidores do Earl's Court, em Londres, para acompanhar o lançamento do single. Nele, Bowie aparece cantando a música maquiado em um terno azul-turquesa contra um fundo branco. Além do original, Rock acabou produzindo mais duas versões do vídeo: uma nos anos 80, quando o tratou com uma estética desbotada, e outra em 2016, quando a gravadora Parlophone o contratou para fazer uma nova edição. "A nova versão é a minha favorita, porque tem todo tipo de coisa que se pode fazer tecnicamente, inclusive brincar com as cores e tudo mais", disse Rock à Songfacts.

Análise da letra


It's a god-awful small affair
To the girl with the mousy hair
But her mummy is yelling, "no"
And her daddy has told her to go

Esses quatro versos iniciais funcionam como uma introdução à narrativa. A letra nos apresenta uma jovem ordinária, “a garota de cabelo comum” — expressão que descreve alguém apagado, de aparência pouco marcante, quase invisível socialmente. O "god-awful small affair" — literalmente, um caso pequeno, terrível — provavelmente se refere a algum conflito romântico, banal aos olhos dos outros, mas que, para a menina, é mais um drama em sua vida.

A mãe grita, enquanto o pai simplesmente manda a filha sair dali. Esse cenário de conflito familiar ajuda a entender de onde nasce seu desejo de evasão: um lar disfuncional, incapaz de lhe oferecer acolhimento, segurança ou significado.

But her friend is nowhere to be seen
Now she walks through her sunken dream
To the seat with the clearest view
And she's hooked to the silver screen

A jovem então se dirige ao cinema, viciada na silver screen — a "tela prateada", metáfora tanto para o cinema quanto para a televisão, para a cultura de massa em geral. Ela senta no melhor lugar, mas não encontra sua amiga, o que reforça seu estado de solidão. Ela sente como se não tivesse ninguém. Com uma família tóxica e amizades que a deixam sozinha, a vida pessoal da garota se revela desiludida.

O verso "walks through her sunken dream" [caminha através de seu sonho naufragado] sugere que o cinema, que antes poderia ter sido um lugar de esperança e encantamento, agora é atravessado com a melancolia de quem percebe que nem a fantasia consegue mais sustentar sua fuga. Seu sonho está afundado, como um navio que não flutua mais. O fato dela conseguir um bom lugar pode indicar também que o cinema está vazio, enfatizando sua solidão avassaladora.

Essa metáfora é poderosa: não é apenas sobre a solidão pessoal da garota, mas sobre uma geração que se sente enganada por promessas de felicidade, prosperidade e estabilidade vendidas tanto pela sociedade quanto pela própria indústria do entretenimento.


Nesse ponto, surge uma reflexão clássica sobre o papel da arte: seria ela apenas uma válvula de escape? Ou deveria funcionar como um espelho da realidade? Enquanto alguns argumentam que a função da arte é entreter e distrair o público das preocupações reais, outros argumentam que é responsabilidade dela refletir essas mesmas preocupações de forma crítica.

Como disse Neil Gaiman, em uma célebre defesa do escapismo: "As pessoas falam sobre escapismo como se fosse algo ruim... Uma vez que você escapa e retorna, o mundo não é mais o mesmo. Você retorna com ferramentas, armas e conhecimentos que não tinha antes. Então estará mais bem equipado para lidar com sua realidade atual".

But the film is a saddening bore
For she's lived it ten times or more
She could spit in the eyes of fools
As they ask her to focus on

O filme, que deveria oferecer refúgio, revela-se um tédio. É triste, repetitivo e previsível. A jovem já viveu aquele filme dez vezes ou mais — não apenas assistiu. Isso sugere que a ficção reproduz, de forma incômoda, a própria mediocridade da vida real. O ciclo é inescapável: tenta-se fugir da realidade, mas a ficção apenas reflete aquilo que se tenta evitar.

O verso "she could spit in the eyes of fools" [ela poderia cuspir nos olhos dos tolos] indica revolta. Talvez contra os cineastas, produtores e roteiristas, que oferecem narrativas vazias, fórmulas prontas, produtos desgastados que tentam mascarar as frustrações humanas com soluções superficiais. Ela rejeita ser tratada como consumidora passiva, recusando-se a “prestar atenção” no que lhe é imposto.

Sailors fighting in the dance hall
Oh, man, look at those cavemen go

O refrão mergulha em imagens oníricas, surreais, quase nonsense à primeira vista. No entanto, estão longe de serem aleatórias. São colagens dos clichês cinematográficos: marinheiros brigando, homens das cavernas, figuras caricatas, violentas ou grotescas, exibidas na tela. Trata-se de um espetáculo tão bizarro quanto familiar. Ela percebe que até a ficção é incapaz de escapar dos padrões, reproduzindo a mesma violência, os mesmos arquétipos e os mesmos erros do mundo real. Ironicamente, os produtores esperam que a garota se concentre justamente nas coisas que ela tenta evitar. É um tédio e tristeza para a garota, porque já vivenciou isso dez vezes ou mais, seja no cinema ou na própria vida.

It's the freakiest show
Take a look at the lawman, beating up the wrong guy
Oh, man! Wonder if he'll ever know
He's in the best-selling show

O espetáculo é descrito como “the freakiest show” [o show mais bizarro]. A cena do policial espancando a pessoa errada pode ser lida tanto como crítica ao abuso de autoridade, quanto à própria alienação dos personagens da cultura pop. A pergunta “será que ele um dia saberá que está no filme de maior bilheteria?” reflete uma profunda crítica metalinguística: tanto os personagens quanto as pessoas no mundo real vivem dentro de estruturas — sejam sociais, políticas ou culturais — das quais muitas vezes nem se dão conta. Nossa protagonista, então, se pergunta se um dia o homem terá consciência de que é só um personagem fictício e que está em dos filmes de maior bilheteria.

Pode se referir tanto ao policial quanto ao homem espancado. Será que um dia perceberá que é apenas parte de um ato, uma espécie de circo cinematográfico que explora sua dor para atrair o público? Será que o policial acredita no que está fazendo? Será que sabem que seu mundo é uma mentira? Será que algum deles se dá conta de que, apesar de suas ações, eles são apenas uma pequena fração de uma realidade inescapável?

Somos todos, de alguma forma, peças num jogo maior, atuando em um roteiro que não escrevemos.

Is there life on Mars?

A pergunta que dá título à música carrega uma densidade poética imensa. No plano imediato, parece um lamento da jovem: não há saída neste mundo, então talvez reste perguntar se há vida em Marte — um símbolo da esperança impossível, da fuga inalcançável, uma metáfora para todas as mídias escapistas (livros, cinema, televisão). É um apelo melancólico à esperança de que exista algo além do mundo.

Bowie, em entrevista ao livro The Complete David Bowie, esclarece: "Acho que ela se encontra decepcionada com a realidade. Embora esteja vivendo na melancolia da realidade, lhe dizem que existe uma vida muito melhor em algum lugar. E ela está amargamente decepcionada por não ter acesso a essa vida".

Marte, planeta inóspito à vida humana, torna-se aqui uma metáfora para a impossibilidade de fuga. Se há vida em Marte, talvez haja esperança de que as fantasias vendidas pela mídia se concretizem — ou, talvez, seja só mais uma ilusão.

Cartaz do filme 2001: Uma odisseia no espaço (1968), de Stanley Kubrick. Quando Bowie compôs "Life On Mars?", a corrida espacial havia colocado o cosmos no imaginário e na cultura popular.


It's on America's tortured brow
That Mickey Mouse has grown up a cow

Aqui a crítica social ganha força. Mickey Mouse, ícone do capitalismo, da cultura pop e do imperialismo cultural norte-americano, "has grown up a cow" [cresceu e virou uma vaca]. Bowie pode estar sugerindo que Mickey tornou-se uma vaca leiteira, uma máquina de gerar lucro, símbolo da transformação da inocente cultura infantil em mercadoria. E, portanto, teria evoluído de um desenho animado popular para um símbolo poderoso do comercialismo hollywoodiano. Mas também pode ser uma referência à vaca sagrada, intocável, endeusado, um símbolo imune à crítica.

Adicionalmente, na gíria britânica, cow pode ser um termo depreciativo para se referir a uma mulher irritante ou estúpida (como “idiota” ou “ridícula”), o que adiciona uma camada de escárnio à crítica.

Now the workers have struck for fame
'Cause Lennon's on sale again

Aqui surge um brilhante trocadilho entre Lennon e Lênin. Por um lado, John Lennon, com sua postura de ativista da paz e das causas sociais, havia lançado recentemente o "Imagine" e anteriormente "Working Class Hero", canções que apelavam diretamente à consciência de classe e às utopias de um mundo melhor. Por outro, Lênin, símbolo do comunismo e da luta revolucionária. Bowie parece ironizar o fato de que até o discurso revolucionário, anticapitalista, havia sido cooptado pelo próprio mercado (tornou-se Mickey Mouse). A rebeldia virou mercadoria; a contracultura — em voga no final dos anos 60 — foi assimilada pela cultura dominante.


Quando Bowie escreveu "Life On Mars?", a promoção em torno do lançamento do álbum Imagine estava acontecendo, o que justifica o verso "porque Lennon está a venda de novo". John Lennon estava literalmente vendendo um novo álbum (de novo). Não deixa de ser interessante a relação entre Lennon e Lênin, já que o trabalhismo e a luta de classes, temas da música do ex-Beatles, eram visões estruturantes do regime comunista. Bowie parece dizer que, agora que Lennon lançou "Working Class Hero", a classe trabalhadora sente a necessidade legítima de fazer greve por fama, de reivindicar seu direito de se tornar famosa. Pelo menos tão famosa quanto o autoproclamado Herói da Classe Trabalhadora: John Lennon.

A classe trabalhadora só se revigorou em sua luta porque a indústria do entretenimento lhe vendeu entretenimento, dizendo que ela foi injustiçada, explorada, etc. O que é irônico, pois ela sustenta o mesmo sistema que a explora ao consumir seus produtos.

See the mice in their million hordes
From Ibiza to the Norfolk Broads

Os "ratos em suas milhões de hordas" são uma representação das massas humanas — consumidores, turistas, trabalhadores. A referência geográfica, de Ibiza (destino turístico espanhol) até Norfolk (região inglesa de lagos e canais), sugere o turismo de massa como fenômeno alienante, onde a busca por lazer e fuga se torna, paradoxalmente, mais uma forma de conformismo. Ou seja, dificilmente será um lugar para escapar, para fugir, se milhões de pessoas viajarem juntas para os mesmos lugares.

Pacotes de férias tornaram-se acessíveis à maioria dos trabalhadores britânicos nas décadas de 60 e 70. Tirar pelo menos uma viagem por ano era comum até mesmo para a classe trabalhadora, principalmente durante as férias escolares, quando as pessoas migravam de suas casas para destinos turísticos como Ibiza e Norfolk.

Rule Britannia is out of bounds
To my mother, my dog, and clowns

"Rule Britannia", hino do imperialismo britânico, torna-se aqui uma piada sem graça, algo fora dos limites para a mãe, o cachorro e os palhaços. É o colapso do orgulho nacionalista, que já não faz sentido para os cidadãos comuns, reduzido a um teatro vazio e sem propósito. Dizer que ele está fora do alcance para mães, cães e palhaços é dizer que já não fazia mais sentido o nacionalismo para pessoas comuns.

Se voltarmos à análise de que essas são imagens que a garota está assistindo no cinema, poderia ser uma cena de um patriotismo militar tolo, sem nenhuma relevância na vida cotidiana dos cidadãos comuns.

But the film is a saddening bore
Because I wrote it ten times or more

Neste ponto, há uma mudança de perspectiva: o discurso que antes era em terceira pessoa passa à primeira. O eu-lírico assume-se como roteirista, como criador dessa realidade — seja ele o próprio Bowie, seja a garota do início, agora adulta, que percebe que até seus próprios processos criativos caíram na armadilha da repetição, da falta de sentido, da alienação. A garota pode ter se tornado uma cineasta, roteirista. E, para seu desânimo, se viu criando os meses filmes sem inspiração e genéricos que entediaram sua juventude. O fato dela estar do outro lado agora é ambíguo, pois ela sabe como isso pode magoar a pessoa que está do lado de lá, assim como foi magoada.

Essa transição é devastadora e brilhante, porque revela que, mesmo quando tentamos nos posicionar como autores das nossas próprias histórias, frequentemente descobrimos que estamos apenas reproduzindo os mesmos ciclos de frustração.

Uma pergunta que ecoa

"Life On Mars?" não é apenas uma música sobre escapismo. É uma obra profundamente crítica, que desnuda as contradições da cultura de massas, do capitalismo, do imperialismo cultural, da alienação social e até da própria arte enquanto indústria. David Bowie constrói uma narrativa que, sob o verniz do surrealismo e do absurdo, revela a desesperança de uma geração que percebe que não há fuga real — nem no entretenimento, nem na política, nem nas promessas de consumo, nem nas utopias vendidas pela própria cultura.

A música não oferece respostas fáceis — e talvez resida aí sua genialidade. A pergunta do refrão não é apenas retórica. É um grito silencioso que ainda reverbera em cada geração que se sente perdida, sufocada por uma realidade hostil, ansiosa por encontrar beleza, transcendência ou, simplesmente, um motivo para continuar. "Existe vida em Marte?" ecoa como uma súplica existencial, carregada de ironia e melancolia. Afinal, se não há vida aqui, talvez reste torcer por um milagre em outro planeta.


E se há vida em Marte, talvez ela seja, na verdade, a capacidade humana de transformar o absurdo em arte — e, através dela, buscar algum sentido no caos. Ou, quem sabe, ela resida na coragem de enfrentar a realidade, mesmo quando tudo nela parece uma piada sem graça e sem sentido.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Babalu: Angela Maria e o poder de um canto-ritual

"Dê um rolê": ode a contracultura ou devocional cristão?

Quem é "Tiny Dancer"?